domingo, 17 de maio de 2015

Auto da Alma, de Gil Vicente

 Argumento

Assi como foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens, pera repouso e refeição dos cansados caminhantes, assi foi cousa conveniente que nesta caminhante vida houvesse uma estalajadeira, pera refeição e descanso das almas que vão caminhantes pera a eternal morada de Deus. Esta estalajadeira das almas é a Madre Santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as insígnias da Paixão. E desta perfiguração trata a obra seguinte.

Figuras: Alma, Anjo Custódio, Igreja, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S. Jerónimo, S. Tomás, Dous Diabos.

Este Auto presente foi feito à muito devota Rainha D. Leonor e representado ao mui poderoso e nobre Rei Dom Emanuel, seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos Paços da Ribeira, em a noite de Endoenças. Era do Senhor de 1518.

Está posta uma mesa com uma cadeira. Vem a Madre Santa Igreja com seus quatro doutores: S. Tomás, S. Jerónimo, Santo Ambrósio e Santo Agostinho. E diz Agostinho:

AGOSTINHO    Necessário foi, amigos,
    que nesta triste carreira
    desta vida,
    pera os mui p'rigosos p'rigos
    dos imigos,
    houvesse alguma maneira
    de guarida.
    Porque a humana transitória
    natureza vai cansada
    em várias calmas;
    nesta carreira da glória
    meritória,
    foi necessário pousada
    pera as almas.

    Pousada com mantimentos,
    mesa posta em clara luz,
    sempre esperando
    com dobrados mantimentos
    dos tormentos
    que o Filho de Deus, na Cruz,
    comprou, penando.
    Sua morte foi avença,
    dando, por dar-nos paraíso,
    a sua vida
    apreçada, sem detença,
    por sentença,
    julgada a paga em proviso,
    e recebida.

    A Sua mortal empresa
    foi santa estalajadeira
    Igreja Madre:
    consolar à sua despesa,
    nesta mesa,
    qualquer alma caminheira,
    com o Padre
    e o Anjo Custódio aio.
    Alma que lhe é encomendada,
    se enfraquece
    e lhe vai tomando raio
    de desmaio,
    se chegando a esta pousada,
    se guarece.

Vem o Anjo Custódio, com a Alma, e diz:

ANJO    Alma humana, formada
    de nenhüa cousa feita,
    mui preciosa,
    de corrupção separada,
    e esmaltada
    naquela frágoa perfeita,
    gloriosa!
    Planta neste vale posta
    pera dar celestes flores
    olorosas,
    e pera serdes tresposta
    em a alta costa,
    onde se criam primores
    mais que rosas!

    Planta sois e caminheira,
    que ainda que estais, vos is
    donde viestes.
    Vossa pátria verdadeira
    é ser herdei
    da glória que conseguis:
    andai prestes.
    Alma bem-aventurada,
    dos anjos tanto querida,
    não durmais!
    Um ponto não esteis parada,
    que a jornada
    muito em breve é fenecida,
    se atentais.

ALMA    Anjo que sois minha guarda,
    olhai por minha fraqueza
    terreal!
    de toda a parte haja resguarda,
    que não arda
    a minha preciosa riqueza
    principal.
    Cercai-me sempre ò redor
    porque vou mui temerosa
    de contenda.
    Ó precioso defensor
    meu favor!
    Vossa espada lumiosa
    me defenda!

    Tende sempre mão em mim,
    porque hei medo de empeçar,
    e de cair

ANJO    Pera isso sam e a isso vim;
    mas enfim,
    cumpre-vos de me ajudar
    a resistir
    Não vos ocupem vaidades,
    riquezas, nem seus debates.
    Olhai por vós;
    que pompas, honras, herdades
    e vaidades,
    são embates e combates
    pera vós.

    Vosso livre alvedrio,
    isento, forro, poderoso
    vos é dado
    polo divinal poderio
    e senhorio,
    que possais fazer glorioso
    vosso estado.
    Deu-vos livre entendimento,
    e vontade libertada
    e a memória,
    que tenhais em vosso tento
    fundamento,
    que sois por Ele criada
    pera a glória.

    E vendo Deus que o metal
    em que vos pôs a estilar,
    pera merecer,
    que era muito fraco e mortal,
    e, por tal,
    me manda a vos ajudar
    e defender.
    Andemos a estrada nossa;
    olhai: não torneis atrás,
    que o imigo
    à vossa vida gloriosa
    porá grosa,
    Não creiais a Satanás,
    vosso perigo!

    Continuai ter o cuidado
    no fim de vossa jornada,
    e a memória,
    que o espírito atalaiado
    do pecado
    caminha sem temer nada
    pera a Glória.
    E nos laços infernais,
    e nas redes de tristura
    tenebrosas
    da carreira, que passais,
    não caiais:
    siga vossa fermosura
    as gloriosas.

Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo a ela e diz:

DIABO    Tão depressa, ó delicada,
    alva pomba, pera onde isso?
    Quem vos engana,
    e vos leva tão cansada
    por estrada,
    que somente não sentis
    se sois humana?
    Não cureis de vos matar
    que ainda estais em idade
    de crecer
    Tempo há i pera folgar
    e caminhar
    Vivei à vossa vontade
    e havei prazer.

    Gozai, gozai dos bens da terra,
    Procurai por senhorios
    e haveres.
    Quem da vida vos desterra
    à triste serra?
    Quem vos fala em desvarios
    por prazeres?
    Esta vida é descanso,
    doce e manso,
    não cureis doutro paraíso.
    Quem vos põe em vosso siso
    outro remanso?

ALMA    Não me detenhais aqui,
    leixai-me ir que em al me fundo.

DIABO    Oh! Descansai neste mundo
    que todos fazem assi:
    Não são em balde os haveres.
    não são em balde os deleites,
    e fortunas;
    não são debalde os prazeres
    e comeres:
    tudo são puros afeites
    das criaturas:

    Pera os homens se criaram.
    Dai folga à vossa passagem
    d'hoje a mais:
    descansai, pois descansaram
    os que passaram
    por esta mesma romagem
    que levais.
    O que a vontade quiser
    quanto o corpo desejar,
    tudo se faça.
    Zombai de quem vos quiser
    reprender
    querendo-vos marteirar
    tão de graça.

    Tornara-me, se a vós fora.
    Is tão triste, atribulada,
    que é tormenta.
    Senhora, vós sois senhora
    emperadora,
    não deveis a ninguém nada.
    Sede isenta.

ANJO    Oh! andai; quem vos detém?
    Como vindes pera a Glória
    devagar!
    Ó meu Deus! Ó sumo bem!
    Já ninguém
    não se preza da vitória
    em se salvar!

    Já cansais, alma preciosa?
    Tão asinha desmaiais?
    Sede esforçada!
    Oh! Como viríeis trigosa
    e desejosa,
    se vísseis quanto ganhais
    nesta jornada!
    Caminhemos, caminhemos.
    Esforçai ora, Alma santa,
    esclarecida!

Adianta-se o Anjo, e torna Satanás:

DIABO    Que vaidades e que extremos
    tão supremos!
    Pera que é essa pressa tanta?
    tende vida.

    Is muito desautorizada,
    descalça, pobre, perdida,
    de remate:
    não levais de vosso nada.
    Amargurada,
    assi passais esta vida
    em disparate.
    Vesti ora este brial;
    metei o braço por aqui.
    Ora esperai.
    Oh! Como vem tão real!
    Isto tal
    me parece bem a mi:
    ora andai.

    Uns chapins haveis mister
    de Valença: ei-los aqui.
    Agora estais vós mulher
    de parecer
    Ponde os braços presumptuosos:
    isso si!
    Passeai-vos mui pomposa,
    daqui pera ali, e de lá pera cá,
    e fantasiai.
    Agora estais vós fermosa
    como a rosa;
    tudo vos mui bem está.
    Descansai.

Torna o Anjo à Alma, dizendo:

ANJO    Que andais aqui fazendo?

ALMA   Faço o que vejo fazer
    polo mundo.

ANJO   Ó Alma, is-vos perdendo!
    Correndo vos is meter
    no profundo!
    Quanto caminhais avante,
    tanto vos tornais atrás
    e através.
    Tomastes, ante com ante
    por mercante,
    o cossairo Satanás,
    porque quereis.

    Oh! caminhai com cuidado,
    que a Virgem gloriosa
    vos espera.
    Deixais vosso principado
    deserdado!
    Enjeitais a glória vossa
    e pátria vera!
    Deixai esses chapins ora,
    e esses rabos tão sobejos,
    que is carregada;
    não vos tome a morte agora
    tão senhora,
    nem sejais, com tais desejos,
    sepultada.

    Andai! dai-me cá essa mão!

ALMA    Andai vós, que eu irei,
    quanto puder.

Adianta-se o Anjo, e torna o Diabo:

DIABO    Todas as cousas com razão
    têm sazão
    Senhora, eu vos direi
    meu parecer:
    Há i tempo de folgar
    e idade de crecer;
    e outra idade
    de mandar e triunfar
    e apanhar
    e adquirir prosperidade
    a que puder.

    Ainda é cedo pera a morte;
    tempo há-de arrepender
    e ir ao Céu.
    Ponde-vos à for da corte;
    desta sorte
    viva vosso parecer
    que tal naceu.
    O ouro pera que é,
    e as pedras preciosas,
    e brocados?
    E as sedas pera quê?
    Tende por fé,
    que pera as almas mais ditosas
    foram dados.

    Vedes aqui um colar d'ouro,
    mui bem esmaltado,
    e dez anéis.
    Agora estais vós pera casar
    e namorar
    Neste espelho vos tereis,
    e sabereis
    que não vos hei-de enganar.
    E poreis estes pendentes,
    em cada orelha seu.
    Isso si!
    Que as pessoas diligentes
    são prudentes.
    Agora vos digo eu
    que vou contente daqui.

ALMA    Oh! Como estou preciosa,
    tão dina pera servir
    E santa pera adorar!

ANJO    Ó Alma despiedosa
    perfiosa!
    Quem vos devesse fugir
    mais que guardar!
    Pondes terra sobre terra,
    que esses ouros terra são.
    Ó Senhor
    porque permites tal guerra,
    que desterra
    ao reino da confusão
    o teu lavor?

    Não íeis mais despejada,
    e mais livre da primeira
    pera andar?
    Agora estais carregada
    e embaraçada
    com cousas que, à derradeira,
    hão-de ficar.
    Tudo isso se descarrega
    ao porto da sepultura.
    Alma santa, quem vos cega,
    vos carrega
    dessa vã desaventura?

ALMA    Isto não me pesa nada,
    mas a fraca natureza
    me embaraça.
    Já não posso dar passada
    de cansada:
    tanta é minha fraqueza,
    e tão sem graça!
    Senhor, ide-vos embora,
    que remédio em mim não sento,
    já estou tal...

ANJO    Sequer dai dous passos ora,
    até onde mora
    a que tem o mantimento
    celestial.

    Ireis ali repousar
    comereis alguns bocados
    confortosos;
    porque a hóspeda é sem par
    em agasalhar
    os que vêm atribulados
    e chorosos.

ALMA    É longe?

ANJO    Aqui mui perto,
    Esforçai, não desmaieis!
    E andemos,
    qu'ali há todo concerto
    mui certo:
    quantas cousas querereis
    tudo tendes.

    A hóspeda tem graça tanta.
    far-vos-á tantos favores!

ALMA    Quem é ela?

ANJO    É a Madre Igreja Santa,
    e os seus santos Doutores.
    I com ela.
    Ireis d'i mui despejada,
    cheia do Spírito Santo,
    e mui fermosa.
    Ó Alma, sede esforçada!
    Outra passada,
    que não tendes de andar tanto
    a ser esposa.

DIABO    Esperai, onde vos isso?
    Essa pressa tão sobeja
    é já pequice.
    Como! Vós, que presumis,
    consentis
    continuardes a igreja,
    sem velhice?
    Dai-vos, dai-vos a prazer
    que muitas horas há nos anos
    que lá vêm.
    Na hora que a morte vier
    como se quer
    se perdoam quantos danos
    a alma tem.

    Olhai por vossa fazenda
    tendes umas escrituras
    de uns casais,
    de que perdeis grande renda.
    É contenda,
    que leixaram às escuras
    vossos pais;
    é demanda mui ligeira,
    litígios que são vencidos
    em  um riso.
    Citai as partes terça-feira,
    de maneira
    como não fiquem perdidos,
    e havei siso.

ALMA    Cal'-te por amor de Deus!
    leixa-me, não me persigas!
    Bem abasta
    estorvares os heréus
    dos altos céus,
    que a vida em tuas brigas
    se me gasta.
    Leixa-me remediar
    o que tu, cruel, danaste
    sem vergonha,
    que não me posso abalar,
    nem chegar

    ao lugar onde gaste
    esta peçonha.
   
Chega a Alma diante da Igreja.

ANJO    Vedes aqui a pousada
    verdadeira e mui segura
    a quem quer vida.

IGREJA   Oh! Como vindes cansada
    e carregada!

ALMA    Venho por minha ventura,
    amortecida,

IGREJA   Quem sois? Pera onde andais?

ALMA    Não sei pera onde vou;
    sou selvagem,
    sou uma alma que pecou
    culpas mortais
    contra o Deus que me criou
    à Sua imagem.

    Sou a triste, sem ventura,
    criada resplandecente
    e preciosa,
    angélica em fermosura,
    e per natura,
    como raio reluzente
    luminosa.
    E por minha triste sorte
    e diabólicas maldades
    violentas,
    estou mais morta que a morte
    sem deporte,
    carregada de vaidades
    peçonhentas.
   
    Sou a triste, sem mezinha,
    pecadora obstinada,
    perfiosa;
    pola triste culpa minha,
    mui mesquinha,
    a todo o mal inclinada
    e deleitosa.
    Desterrei da minha mente
    os meus perfeitos arreios
    naturais;
    não me prezei de prudente,
    mas contente
    me gozei com os trajos feios
    mundanais.
   
    Cada passo me perdi;
    em lugar de merecer,
    eu sou culpada.
    Havei piedade de mi,
    que não me vi;
    perdi meu inocente ser,
    e sou danada.
    E, por mais graveza, sento
    não poder me arrepender
    quanto queria;
    que meu triste pensamento,
    sendo isento,
    não me quer obedecer,
    como soía.

    Socorrei, hóspeda senhora,
    que a mão de Satanás
    me tocou,
    e sou já de mim tão fora,
    que agora
    não sei se avante, se atrás,
    nem como vou.
    Consolai minha fraqueza
    com sagrada iguaria,
    que pereço,
    por vossa santa nobreza,
    que é franqueza;
    porque o que eu merecia
    bem conheço.

    Conheço-me por culpada,
    e digo diante vós
    minha culpa.
    Senhora, quero pousada,
    dai passada,
    pois que padeceu por nós
    quem nos desculpa.
    Mandai-me ora agasalhar
    capa dos desamparados,
    Igreja Madre.

IGREJA   Vinde-vos aqui assentar
    mui devagar
    que os manjares são guisados
    por Deus Padre.

    Santo Agostinho doutor,
    Jerónimo, Ambrósio, São
    Tomás,
    meus pilares,
    servi aqui por meu amor
    o qual milhor
    E tu, Alma, gostarás
    meus manjares.
    Ide à santa cozinha,
    tornemos esta alma em si,
    por que mereça
    de chegar onde caminha,
    e se detinha.
    Pois que Deus a trouxe aqui,
    não pereça.

Enquanto estas cousas passam, Satanás passeia, fazendo muitas vascas, e vem outro (Diabo) e diz:

2º DIABO   Como andas dasassossegado!

1º DIABO   Arço em fogo de pesar

2º DIABO  Que houveste?

2º DIABO   Ando tão desatinado,
    de enganado,
    que não posso repousar
    que me preste.
    Tinha uma alma enganada,
    já quase pera infernal,
    mui acesa.

2º DIABO   E quem t'a levou forçada?

1º DIABO   O da espada.

2º DIABO   Já m'ele fez outra tal
    burla como essa.

    Tinha outra alma já vencida,
    em ponto de se enforcar
    de desesperada,
    a nós toda oferecida,
    e eu prestes pera a levar
    arrastada;
    e ele fê-la chorar tanto,
    que as lágrimas corriam
    pola terra.
    Blasfemei entonces tanto,
    que meus gritos retiniam
    pola serra.

    Mas faço conta que perdi,
    outro dia ganharei,
    e ganharemos

1º DIABO   Não digo eu, irmão, assi:
    mas a esta tornarei,
    e veremos.
    Torná-la-ei a afagar
    despois que ela sair fora
    da Igreja
    e começar de caminhar;
    hei-de apalpar
    se vencerão ainda agora
    esta peleja.
   
Entra a Alma, com o Anjo.

ALMA    Vós não me desempareis,
    Senhor meu Anjo Custódio!
    Ó incréus
    imigos, que me quereis,
    que já sou fora do ódio
    de meu Deus?
    Leixai-me já, tentadores,
    neste convite prezado
    do Senhor
    guisado aos pecadores
    com as dores
    de Cristo crucificado,
    redentor.

Estas cousas, estando a Alma assentada à mesa, e o Anjo junto com ela, em pé, vêm os Doutores com quatro bacios de cozinha cobertos, cantando: «Vexilla regis    prodeunt». E, postos na mesa, diz Santo Agostinho:

AGOSTINHO   Vós, senhora convidada,
    nesta ceia soberana
    celestial,
    haveis mister ser apartada
    e transportada
    de toda a cousa mundana,
    terreal.
    Cerrai os olhos corporais,
    deitai ferros aos danados
    apetitos,
    caminheiros infernais;
    pois buscais
    os caminhos bem guiados
    dos contritos.

IGREJA   Benzei a mesa vós, senhor
    e, pera consolação
    da convidada,
    seja a oração de dor
    sobre o tenor
    da gloriosa Paixão
    consagrada.
    E vós, Alma, rezareis,
    contemplando as vivas dores
    da Senhora;
    Vós outros respondereis,
    pois que fostes rogadores
    até agora.

Oração pera Santo Agostinho.

    Alto Deus Maravilhoso,
    que o mundo visitaste
    em carne humana,
    neste vale temeroso
    e lacrimoso.
    Tua glória nos mostraste
    soberana.
    E Teu Filho delicado,
    mimoso da Divindade
    e Natureza,
    per todas partes chagado,
    e mui sangrado,
    pela nossa infirmidade
    e vil fraqueza!

    Ó Emperador celeste,
    Deus alto, mui poderoso,
    essencial,
    que polo homem que fizeste,
    ofereceste
    o teu estado glorioso
    a ser mortal!
    E Tua Filha, Madre, Esposa,
    horta nobre, frol dos céus,
    Virgem Maria,
    mansa pomba gloriosa;
    oh quão chorosa
    quando o seu Deus padecia!

    Ó lágrimas preciosas,
    do Virginal Coração
    estiladas,
    correntes das dores vossas,
    com os olhos da perfeição
    derramadas!
    Quem uma só pudera ver
    vira claramente nela
    aquela dor,
    aquela pena e padecer
    com que choráveis, donzela,
    vosso amor!
   
    E quando vós, amortecida,
    se lágrimas vos faltavam,
    não faltava
    a vosso filho e vossa vida
    chorar as que lhe ficaram
    de quando orava.
    Porque muito mais sentia
    polos seus padecimentos
    ver-vos tal;
    mais que quanto padecia,
    lhe doía,
    e dobrava seus tormentos,
    vosso mal.
   
    Se se pudesse dizer
    se se pudesse rezar
    tanta dor;
    Se se pudesse fazer
    podermos ver
    qual estáveis ao cravar
    do Redentor!
    Ó fermosa face bela,
    ó resplandor divinal,
    que sentistes,
    quando a cruz se pôs à vela,
    e posto nela
    o filho celestial
    que paristes?
   
    Vendo por cima da gente
    assornar vosso conforto
    tão chagado,
    cravado tão cruelmente,
    e vós presente,
    vendo-vos ser mãe do morto,
    e justiçado!
    Ó Rainha delicada,
    santidade escurecida,
    quem não chora
    em ver morta e debruçada
    a avogada,
    a força da nossa vida?

AMBRÓSIO   Isto chorou Hieremias
    sobre o monte de Sião,
    há já dias;
    porque sentiu que o Messias
    era nossa redenção.
    E chorava a sem-ventura,
    triste de Jerusalém
    homecida,
    matando, contra natura,
    seu Deus nascido em Belém
    nesta vida.

JERÓNIMO    Quem vira o Santo Cordeiro
    antre os lobos humildoso,
    escarnecido,
    julgado pera o marteiro
    do madeiro,
    seu rosto alvo e fermoso
    mui cuspido!

(Agostinho benze a mesa.)

AGOSTINHO    A bênção do Padre Eternal,
    e do Filho, que por nós
    sofreu tal dor,
    e do Spírito Santo, igual
    Deus imortal,
    convidada, benza a vós
    por seu amor
IGREJA   Ora sus! Venha água às mãos.
 
AGOSTINHO    Vós haveis-vos de lavar
    em lágrimas da culpa vossa,
    e bem lavada.
    E haveis-vos de chegar
    a alimpar
    a uma toalha fermosa,
    bem lavrada
    co sirgo das veias puras
    da Virgem sem mágoa, nacido
    e apurado,
    torcido com amarguras
    às escuras,
    com grande dor guarnecido
    e acabado.

    Não que os olhos alimpeis,
    que o não consentirão
    os tristes laços;
    que tais pontos achareis
    da face e envés,
    que se rompe o coração
    em pedaços.
    Vereis seu triste lavrado
    natural,
    com tormentos pespontado,
    e figurado
    Deus Criador em figura
    de mortal.

Esta toalha, em que aqui se fala, é o Verónica, a qual Santo Agostinho tira d'antre os bacios, e  amostra à Alma; e a Madre Igreja, com os Doutores, lhe fazem adoração de joelhos, cantando: «Salve, Sancta Facies».
E, acabando, diz a Madre Igreja:

IGREJA    Venha a primeira iguaria.

JERÓNIMO   Esta iguaria primeira
    foi, Senhora,
    guisada sem alegria
    em triste dia,
    a crueldade cozinheira
    e matadora.
    Gostá-la-eis com salsa e sal
    de choros de muita dor;
    porque os costados
    do Messias divinal,
    santo sem mal,
    foram, polo vosso amor
    açoutados.

Esta iguaria em que aqui se fala são os Açoutes; e em este passo os tiram dos bacios, e os presentam à Alma, e todos de joelhos adoram, cantando: «Ave, flagellum»; e despois diz:

JERÓNIMO    Estoutro manjar segundo
    é iguaria,
    que haveis de mastigar
    em contemplar
    a dor que o Senhor do mundo
    padecia,
    pera vos remediar
    Foi um tormento improviso,
    que aos miolos lhe chegou:
    e consentiu,
    por remediar o siso,
    que a vosso siso faltou;
    e pera ganhardes paraíso,
    a sofriu.

Esta iguaria segunda, de que aqui se fala, é a Coroa de Espinhos; e em este passo a tiram dos bacios e, de joelhos, os Santos Doutores  cantam:  «Ave, corona spinarum». E, acabando, diz a Madre Igreja:

IGREJA    Venha outra do teor
JERÓNIMO    Est'outro manjar terceiro
    foi guisado
    em três lugares de dor
    a qual maior
    com a lenha do madeiro
    mais prezado.
    Come-se com gram tristura,
    porque a Virgem gloriosa
    o viu guisar:
    viu cravar com gram crueza
    a sua riqueza,
    e sua perla preciosa
    viu furar.

E a este passo tira Santo Agostinho os Cravos, e todos de joelhos os adoram cantando: «Dulce lignum, dulcis clavus». E acabada a adoração diz o Anjo à Alma:

 Anjo  Leixai ora esses arreios,
    que est'outra não se come assi
    como cuidais.
    Pera as almas são mui feios,
    e são meios
    com que não andam em si
    os mortais.

Despe a Alma o vestido e jóias que lh'o imigo deu, e diz Agostinho:

AGOSTINHO    Ó Alma bem aconselhada,
    que dais o seu a cujo é:
    o da terra à terra!
    Agora ireis despejada
    pola estrada,
    porque vencestes com fé
    forte guerra.

IGREJA    Venha ess'outra iguaria.

JERÓNIMO   A quarta iguaria é tal,
    tão esmerada,
    de tão infinda valia
    e contia,
    que na mente divinal
    foi guisada,
    por mistério preparada
    no sacrário virginal.
    mui coberta,
    da divindade cercada
    e consagrada,
    despois ao Padre Eternal
    dada em oferta.

Apresenta S. Jerónimo à Alma um Crucifixo, que tira d'antre os pratos; e os Doutores o adoram, cantando «Domine Jesu Christe». E, acabando, diz:

ALMA  Com que forças, com que spírito,
    te darei, triste, louvores,
    que sou nada,
    vendo-Te, Deus Infinito,
    tão aflito,
    padecendo Tu as dores,
    e eu culpada?
    Como estás tão quebrantado,
    Filho de Deos imortal!
    Quem Te matou?
    Senhor, per cujo mandado
    és justiçado,
    sendo Deus universal,
    que nos criou?

AGOSTINHO   A fruita deste jantar
    que neste altar vos foi dado
    com amor
    iremos todos buscar
    ao pomar
    adonde está sepultado
    o Redentor.

E todos com a Alma, cantando «Te Deum laudamus»; foram adorar o moimento.


LAUS DEO

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