Esta seguinte farsa é
o seu argumento que um homem honrado e muito rico, já velho, tinha uma horta: e
andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hortelão fora, veio uma moça de muito bom
parecer buscar hortaliça, e o velho em tanta maneira se enamorou dela que, por
via de uma alcoviteira, gastou toda a sua fazenda. A alcoviteira foi açoitada,
e a moça casou honradamente. Entra logo o velho rezando pela horta. Foi
representada ao mui sereníssimo rei D. Manuel, o primeiro desse nome. Era do
Senhor de M.D.XII.
VELHO Pater
noster criador, Qui es in coelis, poderoso, Santificetur, Senhor, nomen tuum
vencedor, nos céu e terra piedoso. Adveniat a tua graça, regnum tuum sem mais
guerra; voluntas tua se faça sicut in coelo et in terra. Panem nostrum, que
comemos, cotidianum teu é; escusá-lo não podemos; inda que o não mereceremos tu
da nobis. Senhor, debita nossos errores, sicut et nos, por teu amor, dimittius
qualquer error, aos nosso devedores. Et ne nos, Deus, te pedimos, inducas, por
nenhum modo, in tentationem caímos porque fracos nos sentimos formados de
triste lodo. Sed libera nossa fraqueza, nos a malo nesta vida; Amen, por tua
grandeza, e nos livre tua alteza da tristeza sem medida.
Entra a MOÇA na horta e diz o VELHO:
Senhora,
benza-vos Deus,
MOÇA Deus
vos mantenha, senhor.
VELHO Onde
se criou tal flor? Eu diria que nos céus.
MOÇA Mas
no chão.
VELHO Pois
damas se acharão que não são vosso sapato!
MOÇA Ai!
Como isso é tão vão, e como as lisonjas são de barato!
VELHO Que
buscais vós cá, donzela, senhora, meu coração?
MOÇA Vinha
ao vosso hortelão, por cheiros para a panela.
VELHO E
a isso vinde vós, meu paraíso. Minha senhora, e não a aí?
MOÇA Vistes
vós! Segundo isso, nenhum velho não tem siso natural.
VELHO Ó
meus olhinhos garridos, mina rosa, meu arminho!
MOÇA Onde
é vosso ratinho? Não tem os cheiros colhidos?
VELHO Tão
depressa vinde vós, minha condensa, meu amor, meu coração!
MOÇA Jesus!
Jesus! Que coisa é essa? E que prática tão avessa da razão!
VELHO Falai,
falai doutra maneira! Mandai-me dar a hortaliça. Grão fogo de amor me atiça, ó
minha alma verdadeira!
MOÇA E
essa tosse? Amores de sobreposse serão os da vossa idade; o tempo vos tirou a
posse.
VELHO Mas
amo que se moço fosse com a metade.
MOÇA E
qual será a desastrada que atende vosso amor?
VELHO Oh
minha alma e minha dor, quem vos tivesse furtada!
MOÇA Que
prazer! Quem vos isso ouvir dizer cuidará que estais vivo, ou que estai para
viver!
VELHO Vivo
não no quero ser, mas cativo!
MOÇA Vossa
alma não é lembrada que vos despede esta vida?
VELHO Vós
sois minha despedida, minha morte antecipada.
MOÇA Que
galante! Que rosa! Que diamante! Que preciosa perla fina!
VELHO Oh
fortuna triunfante! Quem meteu um velho amante com menina! O maior risco da
vida e mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída, e pois
penado, ainda que amado, vive qualquer amador; que fará o desamado, e sendo
desesperado de favor?
MOÇA Ora,
dá-lhe lá favores! Velhice, como te enganas!
VELHO Essas
palavras ufanas acendem mais os amores.
MOÇA Bom
homem, estais às escuras! Não vos vedes como estais?
VELHO Vós
me cegais com tristuras, mas vejo as desaventuras que me dais.
MOÇA Não
vedes que sois já morto e andais contra a natura?
VELHO Oh
flor da mor formosura! Quem vos trouxe a este meu horto? Ai de mim! Porque,
logo que vos vi, cegou minha alma, e a vida está tão fora de si que,
partindo-vos daqui, é partida.
MOÇA Já
perto sois de morrer. Donde nasce esta sandice que, quanto mais na velhice,
amais os velhos viver? E mais querida, quando estais mais de partida, é a vida
que deixais?
VELHO Tanto
sois mais homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque meu tempo
d’agora vai vinte anos dos passados; pois os moços namorados a mocidade os
escora. Mas um velho, em idade de conselho, de menina namorado... Oh minha alma e meu espelho!
MOÇA Oh
miolo de coelho mal assado!
VELHO Quanto for mais avisado
quem de amor vive penando, terá menos siso amando, porque é mais namorado. Em
conclusão: que amor não quer razão, nem contrato, nem cautela, nem preito, nem
condição, mas penar de coração sem querela.
MOÇA Onde
há desses namorados? A terra está livre deles! Olho mau se meteu neles!
Namorados de cruzados, isso si!...
VELHO Senhora,
eis-me eu aqui, que não sei senão amar. Oh meu rosto de alfeni! Que em hora má
eu vos vi.
MOÇA Que
velho tão sem sossego!
VELHO Que
garridice me viste?
MOÇA Mas
dizei, que me sentiste, remelado, meio cego?
VELHO Mas
de todo, por mui namorado modo, me tendes,
minha senhora, já cego de todo em todo.
MOÇA Bem
está, quando tal lodo se namora.
VELHO Quanto
mais estais avessa, mais certo vos quero bem.
MOÇA O
vosso hortelão não vem? Quero-me ir, que estou com pressa.
VELHO Que
fermosa! Toda a minha horta é vossa.
MOÇA Não
quero tanta franqueza.
VELHO Não
pra me serdes piedosa, porque, quanto mais graciosa, sois crueza. Cortai tudo,
é permitido, senhora, se sois servida. Seja a horta destruída, pois seu dono é
destruído.
MOÇA Mana
minha! Julgais que sou a daninha? Porque não posso esperar, colherei alguma
coisinha, somente por ir asinha e não tardar.
VELHO Colhei,
rosa, dessas rosas! Minhas flores, colhei flores! Quisera que esses amores
foram perlas preciosas e de rubis o caminho por onde is, e a horta de ouro tal,
com lavores mui sutis, pois que Deus fazer-vos quis angelical. Ditoso é o
jardim que está em vosso poder. Podeis, senhora, fazer dele o que fazeis de
mim.
MOÇA Que
folgura! Que pomar e que verdura! Que fonte tão esmerada!
VELHO N’água
olhai vossa figura: vereis minha sepultura ser chegada.
Canta a MOÇA
“Cual
es la niña que coge las flores sino tiene amores?
Cogia la niña la rosa
florida:
El hortelanico prendas le pedia sino tienes amores.”
Assim cantando,
colheu a MOÇA da horta o que
vinha buscar e, acabado, diz:
Eis aqui o que colhi;
vede o que vos hei de dar.
VELHO Que
me haveis vós de pagar, pois que me levais a mi? Oh coitado! Que amor me tem
entregado e em vosso poder me fino, como pássaro em mão dado de um menino!
MOÇA Senhor,
com vossa mercê.
VELHO Por
eu não ficar sem a vossa, queria de vós uma rosa.
MOÇA Uma
rosa? Para que?
VELHO Porque
são colhidas de vossa mão, deixar-me-eis alguma vida, não isente de paixão mas
será consolação na partida.
MOÇA Isso
é por me deter, Ora tomai, e acabar!
Tomou o VELHO a mão:
Jesus!
E quereis brincar? Que galante e que prazer!
VELHO Já
me deixais? Eu não vos esqueço mais e nem fico só comigo. Oh martírios
infernais! Não sei por que me matais, nem o que digo.
Vem um PARVO, criado do VELHO,
e diz:
Dono,
dizia minha dona que fazeis vós cá té à noite?
VELHO Vai-te!
Queres que t’açoite? Oh! Dou ao demo a intrujona sem saber!
PARVO Diz
que fosseis vós comer e não demoreis aqui.
VELHO Não
quero comer, nem beber.
PARVO Pois
que haver cá de fazer?
VELHO Vai-te
daí!
PARVO Dono,
veio lá meu tio, estava minha dona, então ela, metendo lume à panela o fogo
logo subiu.
VELHO Oh
Senhora! Como sei que estais agora sem saber minha saudade. Oh! Senhora matadora, meu coração vos adora de
vontade!
PARVO Raivou
tanto! Resmungou! Oh pesar ora da vida! Está a panela cozida, minha dona não
jantou. Não quereis?
VELHO Não
hei de comer desta vez, nem quero comer bocado.
PARVO E
se vós, dono, morreis? Então depois não falareis senão finado. Então na terra
nego jazer, então, finar dono, estendido.
VELHO Antes
não fora eu nascido, ou acabasse de viver!
PARVO Assim,
por Deus! Então tanta pulga em vós, tanta bichoca nos olhos, ali, cos finado,
sós, e comer-vos-ão a vós os piolhos. Comer-vos-ão as cigarras e os sapos!
Morrei! Morrei!
VELHO Deus
me faz já mercê de me soltar as amaras. Vai saltando! Aqui te fico esperando;
traze a viola, e veremos.
PARVO Ah!
Corpo de São Fernando! Estão os outros jantando, e cantaremos?!...
VELHO Fora
eu do teu teor, por não se sentir esta praga de fogo, que não se apaga, nem
abranda tanta dor... Hei de morrer.
PARVO Minha
dona quer comer; Vinde, infeliz, que ela brada! Olhai! Eu fui lhe dizer dessa
rosa e do tanger, e está raivada!
VELHO Vai
tu, filho Joane, e dize que logo vou, que não há tempo que cá estou.
PARVO Ireis
vós para o Sanhoane! Pelo céu sagrado, que meu dono está danado! Viu ele o demo
no ramo. Se ele fosse namorado, logo eu vou buscar outro amo.
Vem a MULHER do VELHO e diz:
Hui! Que sina
desastrada! Fernandeanes, que é isto?
VELHO Oh
pesar do anticristo. Oh velha destemperada! Vistes ora?
MULHER E
esta dama onde mora? Hui! Infeliz dos meus dias! Vinde jantar em má hora: por
que vos meter agora em musiquias?
VELHO Pelo
corpo de São Roque, vai para o demo a gulosa!
MULHER Quem
vos pôs aí essa rosa? Má forca que vos enforque!
VELHO Não
maçar! Fareis bem de vos tornar porque estou tão sem sentido; não cureis de me
falar, que não se pode evitar ser perdido!
MULHER Agora
com ervas novas vos tornastes garanhão!...
VELHO Não
sei que é, nem que não, que hei de vir a fazer trovas.
MULHER Que
peçonha! Havei, infeliz, vergonha ao cabo de sessenta anos, que sondes vós
carantonha.
VELHO Amores
de quem me sonha tantos danos!
MULHER Já
vós estais em idade de mudardes os costumes.
VELHO Pois
que me pedis ciúmes, eu vo-los farei de verdade.
MULHER Olhai
a peça!
VELHO Que
o demo em nada me empeça, senão morrer de namorado.
MULHER Está
a cair da tripeça e tem rosa na cabeça e embeiçado!...
VELHO Deixar-me
ser namorado, porque o sou muito em extremo!
MULHER Mas
vos tome inda o demo, se vos já não tem tomado!
VELHO Dona
torta, acertar por esta porta, Velha mal-aventurada! Saia, infeliz , desta
horta!
MULHER Hui,
meu Deus, que serei morta, ou espancada!
VELHO Estas velhas são
pecados, Santa Maria vai com a praga! Quanto mais homem as afaga, tanto mais
são endiabradas!
(Canta)
“Volvido nos han
volvido,
volvido nos han:
por uma vecina mala
meu amor tolheu-lhe a
fala
volvido nos han.”
Entra Branca Gil, ALCOVITEIRA,
e diz:
Mantenha Deus
vossa Mercê.
VELHO Olá! Venhais em boa hora!
Ah! Santa Maria! Senhora. Como logo Deus provê!
ALCOVITEIRA Certo,
oh fadas! Mas venho por misturadas, e muito depressa ainda.
VELHO Misturadas
preparadas, que hão de fazer bem guisadas vossa vinda! Justamente nestes dias,
em tempo contra a razão, veio amor, sem intenção, e fez de mim outro Macias tão
penado, que de muito namorado creio que culpareis porque tomei tal cuidado; e
do velho destampado zombareis.
ALCOVITEIRA Mas,
antes, senhor agora na velhice anda o amor; o de idade de amador por acaso se
namora; e na corte nenhum mancebo de sorte não ama como soía. Tudo vai em
zombaria! Nunca morrem desta morte nenhum dia. E folgo ora de ver vossa mercê
namorado, que o homem bem criado até à morte o há de ser, por direito. Não por
modo contrafeito, mas firme, sem ir atrás, que a todo homem perfeito mandou
Deus no seu preceito: amarás.
VELHO Isso
é o que sempre brado, Branca Gil, e não me vai, que eu não daria um real por
homem desnamorado. Porém, amiga, se nesta minha fadiga vós não sois medianeira,
não sei que maneira siga, nem que faça, nem que diga, nem que queira.
ALCOVITEIRA Ando
agora tão ditosa (louvores a Virgem Maria!), que logro mais do que queria pela
minha vida e vossa. De antemão, faço uma esconjuração c’um dente de negra morta antes que entre pela
porta qualquer duro coração que a exorta.
VELHO Dizede-me:
quem é ela?
ALCOVITEIRA Vive
junto com a Sé. Já! Já! Já! Bem sei quem é! É bonita como estrela, uma rosinha
de abril, uma frescura de maio, tão manhosa, tão sutil!...
VELHO Acudi-me
Branca Gil, que desmaio.
Esmorece o VELHO e a ALCOVITEIRA começa a ladainha:
Ó precioso Santo
Areliano, mártir bem-aventurado,
Tu
que foste marteirado neste mundo cento e um ano;
Ó
São Garcia Moniz, tu que hoje em dia
Fazes
milagres dobrados, dá-lhe esforço e alegria,
Pois
que és da companhia dos penados!
Ó
Apóstolo São João Fogaça, tu que sabes a verdade,
Pela
tua piedade, que tanto mal não se faça!
Ó Senhor Tristão da Cunha, confessor,
Ó mártir Simão de Sousa, pelo vosso santo amor.
Livrai o velho pecador de tal cousa!
Ó Santo Martim Afonso de Melo, tão namorado.
Dá remédio a este coitado, e eu te direi um responso com
devoção!
Eu prometo uma oração, todo dia, em quatro meses,
Por que lhe deis força, então, meu senhor São Dom João de Meneses!
Ó mártir Santo Amador Gonçalo da Silva, vós, que sois o
melhor de nós,
Porfioso em amador tão despachado, chamai o martirizado
Dom Jorge de Eça a conselho!
Dois casados num cuidado, socorrei a este coitado deste
velho!
Arcanjo São Comendador Mor de Avis, mui inflamado,
Que antes que fosseis nado, fostes santo no amor!
E não fique o precioso Dom Anrique, outro Mor de
Santiago;
Socorrei-lhe muito a pique, antes que demo repique com
tal pago.
Glorioso São Dom Martinho, apóstolo e Evangelista, passai
o fato em revista,
Porque leva mau caminho, e daí-lhe espírito!
Ó Santo Barão de Alvito, Serafim do deus Cupido, consolai
o velho aflito,
Porque, inda que contrito, vai perdido!
Todos santos marteirados, socorrei ao marteirado, que
morre de namorado,
Pois morreis de namorados.
Para o livrar, as virgens quero chamar,
Que lhe queiram socorrer, ajudar e consolar,
Que está já para acabar de morrer.
Ó Santa Dona Maria Anriques tão preciosa,
Queirais-lhe ser piedosa, por vossa santa alegria!
E vossa vista, que todo o mundo conquista,
Esforce seu coração, porque à sua dor resista,
Por vossa graça e benquista condição.
Ó Santa Dona Joana de Mendonça, tão fermosa,
Preciosa e mui lustrosa mui querida e mui ufana!
Daí-lhe vida com outra santa escolhida que tenho in
voluntas mea;
Seja de vós socorrida como de Deus foi ouvida a Cananea.
Ó Santa Dona Joana Manuel, pois que podeis, e sabeis, e
mereceis
Ser angélica e humana, socorrei!
E vós, senhora, por mercê, ó Santa Dona Maria de
Calataúd,
Por que vossa perfeição lhe dê alegria.
Santa Dona Catarina de Figueiró, a Real,
Por vossa graça especial que os mais altos inclina!
E ajudará Santa Dona Beatriz de Sá:
Daí-lhe, senhora, conforto, porque está seu corpo já
quase morto.
Santa Dona Beatriz da Silva, que sois aquela mais estrela
que donzela,
Como todo o mundo diz!
E vós, sentida Santa Dona Margarida de Sousa, lhe
socorrei,
Se lhe puderdes dar vida, porque está já de partida sem
porquê!
Santa Dona Violante de Lima, de grande estima,
Mui subida, muito acima de estimar nenhum galante!
Peço-vos eu, e a Dona Isabel de Abreu, co siso que Deus
vos deu,
Que não morra de sandeu em tal idade!...
Ó Santa Dona Maria de Ataíde, fresca rosa, nascida em
hora ditosa,
Quando Júpiter se ria!
E, se ajudar Santa Dona Ana, sem par de, Eça, bem
aventurada,
Podei-lo ressuscitar, que sua vida vejo estar
desesperada.
Santas virgens, conservadas em mui santo e limpo estado,
Socorrei ao namorado, que vos vejais namoradas!
VELHO Óh! Coitado!
Ai triste desatinado!
Ainda torno a viver?
Cuidei que já era
livrado.
ALCOVITEIRA Que esforço de namorado e que prazer!
Que hora foi aquela!
VELHO Que remédio me dais vós?
ALCOVITEIRA Vivereis, prazendo a Deus, e
casar-vos-ei com ela.
VELHO É vento isso!
ALCOVITEIRA Assim seja o paraíso. Que isso não é tão
extremo! Não curedes vós de riso, que eu farei tão de improviso como o demo. E
também doutra maneira se eu me quiser trabalhar.
VELHO Ide-lhe,
logo, falar e fazei com que me queira, pois pereço; e dizei-lhe que lhe peço se
lembre que tal fiquei estimado em pouco preço, e, se tanto mal mereço, não no
sei! E, se tenho esta vontade, não deve ela s’agastar; antes deve de folgar
ver-nos morto nesta idade. E, se reclama que sendo tão linda dama por ser velho
me aborrece, dizei-lhe: é um mal quem desama porque minh’alma que a ama não
envelhece.
ALCOVITEIRA Sus!
Nome de Jesus Cristo! Olhai-me pela cestinha.
VELHO Tornai
logo, fada minha, que eu pagarei bem isto.
Vai-se a ALCOVITEIRA, e fica o VELHO tangendo e cantando
a cantiga seguinte:
Pues
tengo razón, señora,
Razón
es que me laa oiga!
Vem a ALCOVITEIRA e diz o VELHO
Venhais em boa hora,
amiga!
ALCOVITEIRA Já
ela fica de bom jeito; mas, para isto andar direito, é razão que vo-lo diga: eu
já, senhor meu, não posso, sem gastardes bem do vosso, vencer uma moça tal.
VELHO Eu
lhe pagarei em grosso.
ALCOVITEIRA Aí
está o feito nosso, e não em al. Perca-se toda a fazenda, por salvardes vossa
vida!
VELHO Seja
ela disso servida, que escusada é mais contenda.
ALCOVITEIRA Deus
vos ajude, e vos dê mais saúde, que assim o haveis de fazer, que viola nem alaúde
nem quantos amores pude não quer ver. Falou-me lá num brial de seda e uns
trocados...
VELHO Eis
aqui trinta cruzados, Que lhe façam mui real!
Enquanto a ALCOVITEIRA vai, VELHO torna a prosseguir o
seu cantar e tanger e, acabado, torna ela e diz:
Está
tão saudosa de vós que se perde a coitadinha! Há mister uma saiazinha e três
onças de retroz.
VELHO Tomai.
ALCOVITEIRA A
benção de vosso pai. (Bom namorado é o tal!) pois gastais, descansai. Namorados
de al! Ai! Não valem real!
Ui!
Tal fora, se me fora! Sabeis vós que me esquecia? Uma amiga me vendia um broche
de uma senhora. Com um rubi para o colo, de marfi, lavrado de mil lavores, por
cem cruzados. Ei-los aí! Isto, má hora, isto si são amores!
Vai-se o VELHO torna a prosseguir a
sua música e, acabada, torna a ALCOVITEIRA e diz:
Dei, má-hora, uma
topada. Trago as sapatas rompidas destas vindas, destas idas, e enfim não ganho
nada.
VELHO Eis
aqui dez cruzados para ti.
ALCOVITEIRA Começo
com boa estréia!
Vem um ALCAIDE com quatro BELEGUINS, e diz:
Dona,
levantai-vos daí!
ALCOVITEIRA Que
quereis vós assim?
ALCAIDE À
cadeia!
VELHO Senhores,
homens de bem, escutem vossas senhorias.
ALCAIDE Deixai
essas cortesias!
ALCOVITEIRA Não
hei medo de ninguém, viste ora!
ALCAIDE Levantai-vos
daí, senhora, daí ao demo esse rezar! Quem vos dez tão rezadora?
ALCOVITEIRA Deixar-me
ora, na má-hora, aqui acabar.
ALCAIDE Vinde
da parte de el-Rei!
ALCOVITEIRA Muita
vida seja a sua. Não me leveis pela rua; deixar-me vós, que eu me irei.
BELEGUINS Sus!
Andar!
ALCOVITEIRA Onde
me quereis levar, ou quem me manda prender? Nunca havedes de acabar de me
prender e soltar? Não há poder!
ALCAIDE Nada
se pode fazer.
ALCOVITEIRA Está
já a carocha aviada?!... Três vezes fui já açoitada, e, enfim, hei de viver.
Levam-na presa e fica o VELHO dizendo:
Oh! Que má-hora! Ah!
Santa Maria! Senhora! Já não posso livrar bem. Cada passo se empiora! Oh!
Triste quem se namora de alguém!
Vem uma MOCINHA à horta e diz:
Vedes
aqui o dinheiro? Manda-me cá minha tia, que, assim como no outro dia, lhe
mandeis a couve e o cheiro. Está pasmado?
VELHO Mas estou desatinado.
MOCINHA Estais doente, ou que haveis?
VELHO Ai! Não sei! Desconsolado,
que nasci desventurado!
MOCINHA Não choreis! Mais mal fadada vai aquela!
VELHO Quem
MOCINHA Branca Gil.
VELHO Como?
MOCINHA Com
cem açoites no lombo, uma carocha por capela, e atenção! Leva tão bom coração,
como se fosse em folia. Que pancadas que lhe dão! E o triste do pregão – porque
dizia:
“Por
mui grande alcoviteira e para sempre degredada”, vai tão desavergonhada, como
ia a feiticeira. E, quando estava, uma moça que passava na rua, para ir casar,
e a coitada que chegava a folia começava de cantar:
“ua
moça tão fermosa que vivia ali à Sé...”
VELHO Oh
coitado! A minha é!
MOCINHA Agora,
má hora e vossa! Vossa é a treva. Mas ela o noivo leva. Vai tão leda, tão
contente, uns cabelos como Eva; por certo que não se atreva toda a gente! O
Noivo, moço polido, não tirava os olhos dela, e ela dele. Oh que estrela! É ele
um par bem escolhido!
VELHO Ó
roubado, da vaidade enganado, da vida e da fazenda! Ó velho, siso enleado! Quem
te meteu desastrado em tal contenda? Se os jovens amores, os mais têm fins
desastrados, que farão as cãs lançadas no conto dos amadores? Que sentias,
triste velho, em fim dos dias? Se a ti mesmo contemplaras, souberas que não
vias, e acertaras.
Quero-me
ir buscar a morte, pois que tanto mal busquei. Quatro filhas que criei eu as
pus em pobre sorte. Vou morrer. Elas hão de padecer, porque não lhe deixo nada;
da quantia riqueza e haver fui sem razão despender, mal gastada.
Fonte:
VICENTE, Gil. O Velho da Horta, 16. ed., Sao Paulo: Brasiliense, 1985.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Anderson Gama (Sao Jose dos Campos - SP)
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