segunda-feira, 21 de março de 2016

Recado ao senhor 903



Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi  outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal devia ser meia-noite e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando vozes, passos e músicas no 1 003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1 003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a  ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1 003, me limito a Leste pelo 1 005, a Oeste pelo 1 001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1 004, ao alto pelo 1 103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da  maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de  hoje em diante, um  comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier  à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21 h 45 min, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 h às 7 h pois às 8 h 15 min deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, es toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.


BRAGA, Rubem. Recado ao senhor 903. In: Para gostar de ler. Crônicas. 12 ed. São Paulo: Ática,1989. v. 1. p. 74-75.

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